Desfolhada

Os textos que nunca tinha tido coragem de escrever... © Reservados todos os direitos de autor dos textos e poemas

quarta-feira, outubro 27, 2004

Chocolate

Nos meus lábios
chocolate de leite
suave e doce
derretido
nos teus lábios
deleite intenso
vício dos afectos
sem hora marcada
carícias de um amanhã
hoje aguardado
aqui espero
aqui encontro
emoções à desgarrada
solta a língua
solta o riso
liberta o espírito
íntima intimidade
de fantasias concretizadas

segunda-feira, outubro 25, 2004

Pacheco Pereira no seu melhor

É bem feito. Os sinais estavam lá. As novelas. As intermináveis e desconchavadas novelas em que todas crianças frequentam colégios da Linha e são louras e precocemente parolas. As Lux e as Flash. O telejornal da TVI. O futebolês e a sua miríade de constelações e estrelas, as maiores, as menores e as anãs, os dirigentes, os agentes, os jogadores, as transferências e os treinadores de bancada e de café.

O 24 Horas e as suas manchetes sanguíneas e colunas rosa-choque. Os três diários desportivos. Os Big Brother's e as chusmas de indigentes que revelaram, geraram e adularam. Os caciques locais.

Felgueiras. Marco de Canaveses. A justiça, apoucada e achincalhada. A Alexandra Solnado e as conversas de Jesus com a cabritinha. As abstenções, galopantes. A política, trauliteira e lapuz. Os impropérios lançados a esmo, pelos carroceiros e pelas azêmolas que habitam o Parlamento e as autarquias deste país de norte a sul. Os deputados que o são porque dominam as concelhias. O triunfo da demagogia, a vitória fácil do populismo.

A farsa da Madeira, esse espectáculo pornográfico instalado há anos na Casa Vigia, onde perora um senhor anti-democrata e fascista, adulado por um dos dois maiores partidos portugueses.

A lenta agonia da Cultura. A asfixia da Ciência. A sangria, continuada, mortal, dos nossos melhores homens e mulheres, em demanda de melhores países, de outras instituições que os animem, que os reconheçam. A invasão obscena do betão em tudo o que é Parque Natural, zona protegida, Rede Natura, arriba fóssil, rio selvagem, orla costeira.

As oportunidades perdidas. O Alqueva. Os fundos de Coesão. O Fundo Social Europeu. Os subsídios à agricultura dados de mão beijada a pessoas que não sabem distinguir um cão de uma ovelha. Os jipes. Os condomínios privados. Os montes no Alentejo. As férias no Brasil e as festas no Algarve. Os milhares que provam, provado, o adágio que diz que quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem.

Os Ferraris do Vale do Ave. Os processos que prescreveram. Os jornais, as rádios, as revistas, as televisões que estão na mão de apenas três grandes grupos económicos. As campanhas eleitorais, pagas a peso de ouro, a troco não se sabe bem do quê. As negociatas. As promessas. As mentiras. Os impostos que iriam descer e afinal sobem. O emprego que iria subir e afinal desce. O IVA que já foi a 17% e agora é a 19%.

O Santana Lopes que passou do Sporting para a Figueira, da Figueira para Lisboa e de todas as vezes foi eleito. Democraticamente. E que foi alçado a número dois do PSD estando, por esse facto, na linha de sucessão para o cargo de primeiro-ministro.

E, quando tudo isso aconteceu, onde estávamos nós?

Na praia? No café? Na Ler Devagar, a folhear Heidegger? Em Londres, a admirar Buckingham Palace?

Não sei onde estávamos. Sei, apenas, que estávamos calados. E é por isso que é bem feito.

Demitimo-nos do dever de falar, de esclarecer, de protestar, de votar. E, se alguns, poucos, falavam, muitos assobiavam para o ar, como se não fosse nada connosco. Era sempre com eles, com os políticos. E estávamos errados: a política é nossa. A política somos nós que a devemos fazer, participando, votando, reclamando, exigindo.

Abstivemo-nos e as coisas aconteceram. Os factos surgiram e ficaram impunes. Os acontecimentos seguiram o seu curso, o barco singrou desgovernado, com os incapazes ao leme e os arrivistas a bater palmas. Agora que o impensável se acastela no horizonte, assim ficamos, aflitos, o coração nas mãos, a perguntarmo-nos: como foi possível? Como será possível?

E mais aflitos ainda ficamos porque sabemos: é possível. Pode acontecer.

Pode acontecer que Paulo Portas e Santana Lopes, dois parasitas do poder, dois demagogos, dois populistas, se enquistem em São Bento. Mesmo as eleições antecipadas, a ocorrer, poderão não o impedir. Mais: as eleições poderão até ser o impulso que necessita essa associação simbiótica contra-natura para se declarar vitoriosa. Bastam umas fotografias nas revistas do coração, uns beijinhos nalgumas feiras, uns ósculos nalgumas recepções, três ou quatro discursos ocos, cheios de sonoridade e de impacto televisivo, a aura de salvadores da pátria e dos bons costumes, e lá vai o povinho do futebol, dos morangos com açúcar e do 24 horas a correr às urnas, ungir o Sr. Feliz e o Sr. Contente com os louros do poder.

E, mesmo que não aconteçam eleições, a cartilha está igualmente traçada. Os impostos a cair. As festas para o povo pagas com o erário público, esse erário minguante que à custa de tanto e de tantos foi custosamente aforrado nos dois últimos anos. As promoções em catadupa, os Institutos Estatais criados por decreto, para promover os novos boys e criar novos empregos efémeros. Os gastos à tripa forra para contentar taxistas, sindicatos, peixeiras, comerciantes, função pública.

Os saneamentos. A ostracização dos críticos, dos descontentes, dos que se manifestam.

Tudo isto pode acontecer. Não só por dois anos, mas também por quatro. Ou mais. Até que o dinheiro se acabe ou até que vague o cargo de Presidente de qualquer coisa. Que até pode ser o do País, que a malta nem se importa muito.

Afinal, os povos cobardes só têm aquilo que merecem!....

Pacheco Pereira

OBS: Afinal, este texto não é do Pacheco Pereira mas sim de um blog http://alexandre-monteiro.blogspot.com/. Um obrigada a Don Badalo por me ter avisado e as minhas desculpas e parabéns ao Alexandre.

segunda-feira, outubro 18, 2004

Banalidades

É assim amor
que as horas passam
já se faz tarde hoje
para o amor
cansaço mortal
dos corpos limitados
bocejo de boa noite
dedos das mãos e dos pés
entrelaçados
aconchego de sonhos
em nuvens brancas
voar de penas fofas

É assim amor
no apressar da manhã
entre chávenas, copos
beijos fugazes
doce de morangos silvestres
amanhecer encantado
linhas de luz solar
pelas frestas das janelas
carteira e chave na mão
abraço e apalpão
um até já de malícia

É assim amor
que amanhecemos
brilhantes
percorremos as horas
cansados, incansáveis
nos descobrimos
foto de entardecer feliz
desejo de um nós comum
recheados de pecado
perdidos de paixão
em pequenas e grandes
banalidades

sexta-feira, outubro 15, 2004

Hoje

As nuvens negras
desenham o céu da manhã
sobre a cidade
gotas de chuva
valsam com o vento
soltas, desinibidas
no meu rosto
refresco de sensações
minhas
silenciosas
nos meus ombros
no meu peito
nas minhas coxas
nos meus olhos
disfarçam lágrimas
de alegria
um prazer molhado
multiplicado
pelo azul
com que me olhas
maravilhado

segunda-feira, outubro 11, 2004

Decisão

Vi em ti
olhos claros de desejo
mãos cheias de ternura
timidez desajeitada
língua quente irrequieta
um querer decidido
âncora de porto seguro
dois arco-iris completos

Vi (-me) em ti
planta sorrindo à chuva
pétalas abertas de entrega
laranja descascada e sumarenta
cerejeira ainda em flor
cantorias desafinadas
planície calma de girassóis
lágrimas de riso
gargalhadas de paixão

Vim (-me) em ti
lambidelas de mel nos dedos
beijos de chocolate derretido
leite creme derramado
salada russa de emoções
de arroz doce lambuzado
doce pecado alcançado

E fiquei.

quinta-feira, outubro 07, 2004

Mistérios

Esta manhã espreitei
pela janela semi-nua
o dia já nascido
a pressa das pessoas
a serra a espreguiçar-se
o sol atarefado em brindar-nos com o seu brilho
e senti
que existe uma razão qualquer
(in) compreensível
para que tudo exista
que há em mim uma força que perdura
uma vontade guerreira
de desejar
de ser desejada
da felicidade latente
em cada sorriso trocado

Naquele momento
desejei que estivesses comigo à janela
a celebrar o mistério da felicidade
onde a vida é construída de sonhos
e concretizada no amor

quarta-feira, outubro 06, 2004

Desfolhada

Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.
Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.
É milho-rei
milho vermelho
cravo de carne
bago de amor
filho de um rei
que sendo velho
volta a nascer
quando há calor.

Minha palavra
dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Minha raiz de pinho verde
meu céu azul tocando a serra
oh minha água e minha sede
oh mar ao sul da minha terra.

É trigo loiro
é além tejo
o meu país
neste momento
o sol o queima
o vento o beija
seara louca em movimento.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Olhos de amêndoa
cisterna escura
onde se alpendra
a desventura.
Moira escondida
moira encantada
lenda perdida
lenda encontrada.
Oh minha terra
minha aventura
casca de noz
desamparada.
Oh minha terra
minha lonjura
por mim perdida
por mim achada.


in SANTOS, Ary dos, As Palavras das Cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho), Lisboa, Edições Avante, 1995. Música de Nuno Nazareth Fernandes. Escrita em 1968. Foi inicialmente patenteada com o título Desfolhada Portuguesa, modificado pelo autor em 1969 para Desfolhada. Interpretada por Simone de Oliveira, concorreu ao Festival da RTP em 1969, obtendo o 1º lugar.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Folhas de mim

Dentro das folhas
sonho as palavras
falo em silêncio
leio entrelinhas
visto-me de letras
envolta nas emoções
dispo-me de medos
insatisfeita
deslumbro-me com ilusões
navego num mar de segredos
que não me contei
suspiro um vendaval
de desabafos celestiais
recolho-me em conchas e búzios
em forma de oração
(re)vejo-me em reflexos de espelhos
lambo as feridas do passado
vivo o ontem
o hoje e o amanhã
lavo as lágrimas
e nasço num futuro
oferecido agora
em mil sorrisos
a preto e branco coloridos
colo-me em mil pedaços
poço de contradições
desejo(-te)
por entre as folhas
e descanso tranquila